quarta-feira, outubro 18, 2006

Um namoro eterno

Antes da minha partida para Macau deixei aqui um post no qual lhe chamava Musa do Oriente , mas o JV alertou-me se não seria agora a Las Vegas do Oriente , uma questão pertinente e da qual falava também um artigo da Visão dessa semana.

Pois é bem verdade que a Macau que encontrei agora é bem diferente da Macau que conheci em 1999 e que reencontrei em 2001.

Os aterros e as novas construções proliferam pela velha Macau , deixando edificios ex-libris da cidade completamente perdidos da vista , sendo esta substituída por sumptuosos casinos e hoteis cheios de néons e cuja decoração é do mais kitch que se possa imaginar. Também o porto exterior , aonde atracam os jetfoils vindos de Hong Kong ( muitos deles com nomes de ilhas açorianas : Pico , São Jorge ... é lindo ) , é agora arrasado pelo casino Sands e por um complexo de contruções onde existem uma série de lojas , o Fisherman’s Wharf ( com a reprodução do palácio proibido de Pequim , construções europeias , um vulcão e sei mais lá o quê ; um género de Disney para adultos que não perdi tempo a visitar ) . A nova torre de Macau ( que também não visitei ) , mesmo em frente ao hotel onde estive hospedada , junto à nova ponte para a Taipa, cuja estrada começa mesmo em frente ao meu querido templo de Á-Ma e ao museu maritimo , deixando estes de ser banhados pelo rio das pérolas ( onde andarão elas ? ) , mas por uma estrada , o que me chocou de facto. A Taipa e Coloane , as duas outras ilhas pertencentes a Macau estão já ligadas por terra , uma zona completamente nova chamada Cotai e onde está a acabar de ser construída uma réplica do Venetian de Las Vegas , para além de um sem número de casinos que por ali já existem. Só Coloane vai escapando para já a esta loucura imobiliária , permanecendo o espaço mais verde ( quase o único ) e que mais está em harmonia com o mar , que aqui se junta ao rio das pérolas , bem barrento ( fala-se na eventual construção de uma marina nesta zona , visto Macau só ter portos de pesca , de barcos de mercadoria e de passageiros ).

Das portas do cerco que ligavam Macau à China , resta agora uma pequena memória , envolta numa enorme e moderna estrutura fronteiriça que se passa apenas a pé , onde numa hora se tira um visto que custa por pessoa 150HK Dollar ( há possibilidade de tirar um visto de grupo numa agência de viagens por exemplo , mas tem de ser com alguma antecedência e fica bastante mais barato) e se preenchem inúmeros formulários que ninguém lê , facultando a ida à China por um dia , o qual acaba por se passar todo o tempo num centro comercial onde é de facto impossível resistir a tanta oferta e a preços impensáveis. Muitos chineses que vivem em Zhuhai trabalham agora em Macau . Muitos outros passam aquela fronteira para ir jogar a Macau. Não faço ideia do número de pessoas que todos os dias passam aquela fronteira , mas é certamente um número muito elevado, a avaliar pelo fluxo de gente que se movia de um lado para o outro .

Com tudo isto é claro que Macau se está a transformar na cidade do jogo do Oriente e talvez por isso só aterrem no aeroporto voos vindos de paises da Ásia ( os desgraçados que vêm da Europa têm sempre que ir a Hong Kong e apanhar o barco).
Mas este crescimento alucinante está neste momento a provocar um colapso em termos de serviços noutros sectores que não os do jogo. A mão de obra mais especializada encontra-se agora a trabalhar nos casinos ou nos respectivos hoteis , pois são as entidades que melhores ordenados pagam , pelo que tudo que não esteja associado ao jogo , está a entrar em colapso por falta de gente especializada para trabalhar. É que gente há e aos milhões , mas não falam idioma nenhum a não ser o mandarim ou o cantonês e como Macau já está cheia de filipinos , a entrada destes nesta zona de administração especial , não é há muito permitida , pois há que dar lugar aos da terra , o que até acho muito bem . O problema é que neste momento há um grande desfazamento entre a oferta de postos de trabalho e gente capaz de assumir determinadas funções. Levará algum tempo a especializar tanto chinês , pelo que até lá haverá hoteis de 5 estrelas com serviços de 2 , empresas de transfers com veículos e sem condutores , lojas que abrem hoje para fechar daqui a um mês... Macau vive dias de mudança e de mudança brusca.

Os chineses , agora directores de grande maioria dos serviços públicos , assumem os seus cargos de chefe e os seus funcionários de meros executantes , de pessoas contratadas para cumprir ordens , não para pensar.
Os macaenses , filhos de portugueses e chineses , vivem a dualidade de não serem uma coisa nem outra e vão tomando partindo da nacionalidade que mais lhes for conveniente.
Os portugueses que ficaram por sentirem Macau como parte de si próprios e não apenas a terra da árvore das patacas.

Este foi um lado de Macau que encontrei e com o qual entrei em conflito , confesso.
Não foi para mim fácil voltar a trabalhar em Macau , onde sempre as comitivas que acompanhei foram recebidas de braços abertos , sem grandes luxos , mas sendo respeitadas as suas condições contratuais .
Desta vez senti uma certa hostilidade , naquela base do “se queres cá vir , tem que ser como nós queremos” , “é pegar ou largar”.
É quase por favor que os portugueses continuam a poder apresentar os seus espectáculos em Macau , o que nos deixa numa situação incómoda.
A este respeito tiro o chapéu a alguns portugueses que amam Macau e que não querem desisitir de um namoro de mais de 500 anos , assim do pé para a mão.
São eles que resistem de pé e cal para que Portugal não seja esquecido em Macau , tal como o foi em Goa e em muitos outros países por esse mundo por onde a nossa gente passou , se instalou e se integrou , tal como revelam os primeiros jogos da lusofonia ( com a participação do Sri Lanka , por exemplo ) que decorriam em simultâneo com o Festival Internacional de Música de Macau , no qual actuou Carlos do Carmo ( Artista com quem trabalhei pela primeira vez , sem antes nos conhecermos e com quem tive a honra e o privilégio de privar durante toda a semana que passou ), no Teatro D.Pedro V , a primeira sala de espectáculos ocidental a ser construída na Ásia.

O legado histórico português está a salvo pela Unesco – é desde o ano passado património mundial . É esta zona histórica que ao mesmo tempo torna Macau um local único na China e mais um atractivo para os turistas. Aliás , é curioso observar que quase todos os caminhos pedonais tanto do centro da cidade como das novas áreas urbanas são calçada portuguesa. Há até quem diga que , actualmente , existem mais calceteiros em Macau do que em Portugal . Acredito que sim e que qualquer dia teremos que os ir buscar a Macau para arranjarem os nossos passeios.
E se há algo que admiro nos chineses é esta “paciência de chinês “ que muito em breve os tornará na maior potência mundial.

Mas aquela Macau à qual chamo musa ainda permanece.
Aquela Macau do templo e Á-Ma, deusa maritima , junto ao rio das pérolas , de onde se julga ter surgido o seu nome A-Ma-Gao ( Baia de Á-Ma ).
Aquela Macau onde os navegores portugueses chegaram cerca de 1555 , instalando-se depois como comunidade pescadora.
Aquela Macau onde durante mais de 500 anos viveram portugueses e chineses , num respeito quase único pela cultura de cada um, quase como que em constante sedução.
Aquela Macau onde os próprios chineses se comunicam de forma diferente – o cantonês e o mandarim ; em que uma palavra pode ter até 9 sentidos consoante os tons em for dita .
Aquela Macau em que a escrita é arte de interpretar e sempre sujeita a diferentes leituras .
Aquela Macau em que a comunicação vem de dentro.
Aquela Macau de igreja católica e templo budista com paredes meias.
Aquela Macau da Bela Vista e da Felicidade.
Aquela Macau de castanha assada e de peixe a secar na rua.
Aquela Macau de outros cheiros e outras cores inconfundiveis .
Aquela Macau de ar quente e húmido que nos toca o corpo.
Aquela Macau que festeja a lua com bolinhos ( com ovo de pato em alusão à mesma).
Aquela Macau de novo ano chinês e de santos populares.
Aquela Macau onde os velhos são sábios e respeitados , acordando com o dia a praticar o seu Tai-Chi e passando as tardes a jogar Mahjong nos jardins , cada um acompanhado do seu passarinho , na gaiola que penduram nas árvores para também eles disfrutarem de companhia .
Aquela Macau que tantos poetas inspirou , desde Luis de Camões a Camilo Pessanha.
Aquela Macau labirintica por onde gosto de me passear e perder.
Aquela Macau que é preciso viver de dia e de noite , sem perder uma pitada.
Aquela Macau que também é casa , mas longe de casa.
Aquela Macau que me aperta o coração a cada despedida.
Aquela Macau onde um dia terei sempre de voltar.

Não consigo explicar. Macau entranha-se em mim.

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