Em Fevereiro de 2006, escrevi, sem publicar, estas memórias sobre o meu Inter Rail :*
Há poucos dias tive a oportunidade de ver o filme “ A residência espanhola” e uma vez que nunca fiz nenhum programa de Erasmus, só me conseguia lembrar da experiência mais próxima que tive, o “meu” inter rail.
Confesso que tive uma vontade enorme de voltar a ser uma jovem estudante para fazer Erasmus, mas fico-me pelo facto de ter sido uma jovem estudante aventureira ;)
Ainda não tinha 18 anos e decidi-me a fazer o inter-rail. Na altura, estudava no Sagrado Coração de Maria e não consegui companhia para a viagem. No entanto, dois anos antes tinha conhecido um grupo de austríacos, em Lagos, no Parque de Campismo da Trindade ( com quem vivi outras histórias para contar um dia ), com quem fui mantendo contacto.
A Susie foi a pessoa de quem fiquei mais próxima e foi com ela que parti à aventura, mas de Lisboa a Innsbruck parti sozinha.
Lembro-me de ter um diário, um bloco de capa dura de cor verde, oferecido pela minha amiga Paula Neves de Espinho ( de quem nada sei há muitos anos ), cheio de pormenores dessa viagem. Desse diário resta apenas a memória dele e algumas das histórias vividas.
O que nunca pude largar, foi a declaração, assinada pelos meus pais, autorizando que a menor ( eu ) fizesse essa viagem, pois caso contrário teria sido recambiada para casa logo na fronteira com Espanha.
Lembro-me de regressar do inter-rail um pouco desapontada com alguns momentos e locais por onde passei.
Hoje acho que tudo foi tão enriquecedor! Hoje sinto o que aqueles dias foram importantes para ver o Mundo como ele é e não como o imaginamos dos filmes e da propaganda das agências de turismo.
Como já não tenho diário, vou tentar deixar aqui registado, pelo menos, os locais por onde fui passando e aqueles momentos que mais me marcaram e que guardo comigo até hoje.
É capaz de ser um pouco extenso, mas também só lê quem quer .
Lisboa – Paris
Cheguei e tinha à minha espera a Caroline ( que havia conhecido dois anos antes e com quem ainda hoje mantenho contacto. A nossa história também é engraçada, mas hoje não dá para tudo).
Acabámos por passar a noite num bar de jazz ( La Muse Gueule ), para os lados da Bastilha, onde actuavam músicos meus conhecidos, o Cató, o Telmo e o Fredo Mergner.
Era um espaço sombrio e eles dormiam no andar de cima. Passámos a noite em amena cavaqueira até chegar a hora de seguir viagem até Innsbruck.
Paris – Innsbruck
À minha espera na estação estava a Susie e a sua querida mãe Ingrid.
Fui recebida na sua casa com todo o carinho e não me posso esquecer nunca dos mimos da “minha mãe austríaca”, de quem guardo muita saudade e esteja ela onde estiver sei que estará bem. Todas as noites ela deixava um chocolate debaixo da almofada da minha cama, com um bilhetinho que dizia: sweet dreams :)
Foram dias de convívio com os amigos que havia conhecido em Lagos e em especial com o Patsie, que entretanto foi pai e por quem tinha uma paixoneta secreta (embora eu nunca tenha conseguido disfarçar essas coisas).
Lembro-me dos passeios na cidade e também pelo campo ( que me fazia recordar a série da Heidi, ainda recente na minha memória ). Dos rios transformados em praias cheias de gente, sempre que o sol sorria um pouco. Da montanha cheia de neve em pleno verão. De uma tarde num SPA fantástico. Da possibilidade de uma noite ir ao Lago Di Garda, já em Itália, mas devo ter achado que era loucura a mais e deixei-me ficar por casa.
Houve uma recordação que tive de trazer: um chapéu tirolês, que se perdeu algures no decorrer destes anos.
Innsbruck - Bologna - Brindisi
Partimos as duas de mochila às costas e tentando sempre que a viagem fosse de noite, de forma a evitar despesas com albergues, mesmo que da juventude.
O melhor local para dormir era sem dúvida, no corredor do comboio.
A viagem até Brindisi teve uma paragem algures já em Itália, mas finalmente chegámos a Brindisi, cidade de onde partiriamos para a Grécia, o grande motivo de tal aventura.
Não foi fácil perceber como funcionava o esquema da compra dos bilhetes do barco e ainda mais dificil foi arranjar onde dormir, mas lá nos desenráscámos e no dia seguinte partimos para a Grécia.
Brindisi - Corfu - Atenas
Os bilhetes eram os mais baratos, aqueles que todos os “mochileiros” compravam – os lugares no deck, ao ar livre. Mas éramos jovens e nem o imenso calor do dia, nem o imenso frio da noite nos atormentava, até porque a imensa lua cheia nos sorria :*
Durante a viagem, toda aquela gente aventureira, sem destino ou sem preocupação pelo que o destino pudesse trazer, conheceu-se.
Ao chegarmos a Corfu, o casal brasileiro ( ela chamava-se Carmen e era de São Paulo e ele já não me recordo ) com quem tínhamos navegado no Adriático, juntou-se a nós.
A partir daí o destino era Atenas, cidade que eu imaginava que teria de ser exactamente como eu a idealizara.
Seguimos confiantes, até porque o meu primo Pedro, que é diplomata, vivia em Atenas e à partida teríamos guarida em sua casa.
Mas chegámos à cidade, julgo que, numa 6ª feira e não foi fácil encontrar a casa do Pedro. Quando por fim chegámos à morada certa, não estava ninguém em casa :(
Lá conseguimos encontrar um alberge que tinha vários tipos de quarto ( camaratas, quartos de 4, 6, 8 pessoas, enfim, um sem número de opções) e uma rececpcionista que até falava francês. Decidimos pagar um pouco mais pela estadia para podermos ficar, os quatro, num quarto sozinhos.
Correu tudo bem e acordámos cheios de pica para conhecermos a cidade e, é claro, a zona histórica do Partenon.
Eu adorei toda a zona envolvente e aquelas lojas cheias de produtos fabulosos, diferentes daqueles que havia em Portugal – consegui comprar uma série de lenços muito “freaks” e um cachimbo muito peculiar para o meu pai, que ele usou sempre com um carinho especial ( na época ainda não havia globalização e as mercadorias específicas de cada local só se encontravam nos seus países de origem ).
Achei, no entanto, a cidade um caos e o esquema de transportes muito confuso. Os táxis não funcionavam como em Portugal. Eles iam parando e recolhendo passageiros pelo caminho e quase nunca cobravam o preço do que constava no taximetro, inventando uma verba fixa à qual ao fim de umas duas viagens me opus, dizendo que era estrangeira, mas que era portuguesa e não americana e sobretudo que não era parva. Não pagava em dólares, por isso que me cobrassem o que me era devido. Pareceu dar resultado...
O momento mais especial em Atenas foi poder assistir ao ballet da Ópera de Paris, ainda com o Nureyev, no Teatro Dioniso, numa noite de lua cheia inesquecível.
No entanto, nessa noite tivemos uma surpresa no nosso quarto...mais hóspedes! Passei-me completamente com toda aquela gente, mas de nada valeu, pois a tal recepcionista que falava francês tinha desparecido e só se falava grego :( Por sorte, consegui falar com o Pedro que havia chegado do seu fim-de-semana e pouco tempo depois tínhamos um carro do corpo diplomático à porta do albergue para nos levar ( o pânico instalou-se entre os funcionários ).
E assim, lá foram 4 “mochileiros” invadir a casa do Pedro por uns dias ( até hoje nem sei como lhe agradecer e como é que ele teve paciência para tanto).
Com o Pedro conhecemos outra cidade e bons restaurantes, mas mesmo assim meti-me numa aventura sózinha com a Susie. Resolvemos ir ao Festival do Vinho a Dafni e de autocarro !
O pagamento do bilhete fazia-se colocando uma moeda numa caixa acrílica, mas achei estranho e por gestos ia perguntando ao motorista se a moeda seria de facto para colocar na tal caixa, ao que ele respondia algo como : “na,na” e abanava a cabeça como que a dizer NÃO. Mas era tudo ao contrário, “na” queria dizer sim e o abanar da cabeça dele também !
Lá chegámos ao recinto da festa do vinho, onde nos deram um copo, estilizado com figuras de Bachus,logo após termos pago o respectivo bilhete.
Foi uma noite divertida onde dançámos todas aquelas danças tradicionais com uma série de rapazes, que contrariavam todas as minhas expectativas do que seriam os homens gregos . Não eram altos, nem esculturais, nem de cabelo encaracolado. Na verdade, pareciam turcos. E era assim por toda a cidade – teriam ido todos de férias ou ter-se-iam tornado estátuas ?
E chegou a hora de regressar a Itália, fazendo o percurso inverso, mas de novo as duas sózinhas.
O nosso destino era : Positano, na Costa Amalfitana.
Atenas – Corfu - Brindisi - Foggia - Nápoles – Sorrento – Positano
Ao chegarmos a Brindisi, o controle de passaportes foi duro e não sei porque motivo embirraram comigo. Fizeram-me esperar um bom bocado até me darem autorização para sair do barco. Até hoje não sei o que se terá passado, talvez o facto de ser menor ?
No meio de toda aquela confusão encontrei a Nã, muito amiga da minha sobrinha Teresa; um encontro muito breve, pois havia que seguir caminho.
Fomos de comboio até Nápoles, com paragem em Foggia onde passámos a tarde num jardim, onde uns miúdos malandros meteram conversa connosco. Mas eram mesmo crianças. Uma delas ofereceu-me um pequeno quadro com o desenho de uma boneca, com a sua assinatura por trás, que ainda hoje guardo.
Mais uma vez dormimos no chão com os nossos sacos de cama.
Recordo-me que a chegada a Nápoles ficou marcada por um nascer do sol grandioso, laranja vivo, como não voltei a ver outro igual.
Do comboio passámos logo para uma camioneta que nos levou até Sorrento e depois uma outra que nos levou até Positano.
E porquê Positano ? Por razão nenhuma em especial, apenas o facto da mãe da Anne-Marie, uma amiga austríaca da Susie, ter aí uma casa, onde simpáticamente nos albergou durante cerca de uma semana.
Já na época, Positano estava ligada ao mundo da moda . Eram típicas as roupas com imensas flores . O namorada da Claudia ( mãe da Anne-Marie) tinha, inclusive, uma loja de roupa, por onde passávamos todos os dias, sempre que descíamos aquela encosta fabulosa até à praia.
A praia, essa, era de calhaus, ao que eu não achava grande graça, até porque sempre tive os pés sensíveis. Para além disso estava cheia de pescadores que não nos largavam, isto porque a Susie, sendo loira, era um enorme sucesso para aqueles homens tão rudes, tão diferentes dos modelos italianos que nos impigiam nas revistas, mesmo nessa época.
Um dia, fomos dar um passeio de barco com a Claudia e uns amigos , pela costa, que é lindissima, onde demos uns fantásticos mergulhos –belo dia, esse.
Passámos também um dia de loucos em Nápoles , pois era domingo e havia um grande jogo de futebol e na época o Maradona tinha acabado de entrar para o clube da cidade. Eram cartazes do Maradona por todo o lado e o trânsito um caos. Tenho pena de não ter conhecido melhor esta cidade e os seus recantos.
De uma outra vez aventurámo-nos a ir sózinhas visitar Pompeia , sim porque eu não podia estar tão perto do Vesúvio e desta cidade, petrificada pela lava do vulcão, sem a visitar. Foi uma emoção pisar aquele chão, de tantas histórias que na altura eu lia. No entanto, foi uma desilusão ver aquele espaço tão mal tratado com escritos sobre os frescos e as paredes que restam das casas, com lixo por todo o lado – espero, francamente , que nestes últimos 20 anos , alguma coisa tenha mudado , para melhor. Para além disso , todos os objectos de interesse e os corpos petrificados que mais se conservaram , estavam em Nápoles e não ali. Fosse como fosse, aquele lugar mexeu comigo ...
Entretanto, a Susie estava saudosa do seu namorado, que acabou por se juntar a nós. E eu deixei-os a namorar e resolvi seguir viagem sozinha.
Positano – Sorrento – Nápoles – Nice – Barcelona
E assim foi até Barcelona , passando sempre as noites no comboio.
A única paragem foi uma tarde em Nice onde encontrei um grupo de portugueses , as primeiras pessoas com quem estive e falei depois da minha saída de Positano. Não voltei a encontrá-los.
Barcelona – Madrid
Cheguei a Barcelona e o primeiro passo foi encontrar um quarto para dormir, mas não poderia ser muito caro. Lá me safei, num hotel junto à estação ( Hostal Santa Marta), onde fiquei num mini quarto, por um preço muito razoável.
Aí sim, pude conhecer a cidade a meu belo prazer .
Passeei-me por todo o centro histórico e visitei todo os museus que pude ( guardo bem na memória o Museu Picasso e o Museu Nacional em Montjuic ).
Também passei uma tarde no jardim zoológico , isso já depois de ter estado na Sagrada Familia e na Calle Diagonal, a admirar as construções de Gaudi.
Numa das noites, o Pi de la Sierra, tocava por detrás da catedral de Barcelona , num espaço ao ar livre devidamente preparado com plateia e fechado, de modo a puderem ser cobradas entradas ( ou seja , aquilo que se deveria fazer em tanta zona histórica do nosso País ). Eu já quase não tinha dinheiro, mas tinha de assistir ao concerto deste cantautor , que era tão admirado lá em casa, pela minha mãe. Tanto chateei os porteiros, que lá me deixaram entrar e, assim, tive a minha noite especial em Barcelona.
Os trinta dias de inter-rail chegavam ao fim, mas não me apetecia voltar já para casa. Tinham sido uns dias diferentes dos que eu esperava e na altura não estava muito convencida do sucesso desta viagem. Resolvi que a última viagem de comboio seria até Madrid, onde me esperavam sempre amigos que nunca vou esquecer.
Madrid – Lisboa
Neste relato da chegada a Madrid, a memória traiu-me, porque pelos vistos andei 2 dias já não me lembro por onde, dado este bilhete escrito que encontrei no caderno de viagem ;) Tudo o resto, confere.
E lá cheguei eu a Madrid, no último dia de validade do passe.
Mas em Madrid eu tinha sempre a “minha” casa, a do Fernando Girão e da Madalena que me acolhiam com imenso carinho e amizade.
A primeira coisa que fiz ao chegar a casa, em Legazpi, foi tomar um grande banho e quando a Madalena viu as minhas unhas dos pés até os seus cabelos ficaram em pé...
Acabei por ficar quase uma semana, pois os dias em Madrid passavam a correr , isto porque eu vivia mais de noite que de dia , para dizer a verdade.
Havia sempre concertos para ir ver , quanto mais não fossem os do Fernando.
Havia o Oba Oba onde encontrava tantos amigos : Ruben , Foguete , Bida , Tarzan, enfim...
Havia o Palmanegra da Angela e do Manolo.
Havia tanto restaurante para conhecer com este e aquele amigo.
E havia sempre o meu amigo Rodolfo ( e o seu programa Trópico Utópico” ) que nos anos a seguir me abriu a sua casa, que passou a ser mais uma casa “minha” sempre que ia a Madrid.
E porque já era altura de voltar, comprei o bilhete de camioneta e voltei a Lisboa, com a ideia de que só Barcelona e Madrid tinham valido a pena. Como eu estava errada...
Passados mais de 6 anos, reencontrei o tal caderno verde de viagem que a Paula me havia dado ( e desde então também voltei a estar com ela), a tal declaração dos meus pais que me permitiu viajar mesmo sendo menor e também uma cópia do meu passaporte e o passe Inter Rail :)
Itinerário :
1 Agosto : Lisboa – Paris
2 Agosto : Paris – Innsbruck
9 Agosto : Innsbruck- Bologna
10 Agosto : Bologna – Brindisi
16 Agosto – Brindisi – Foggia
17 Agosto – Foggia – Napoli
25 Agosto – Napoli – Roma – Nice
26 Agosto – Nice –Port-Bou
27 Agosto –Port-Bou – Barcelona
30 Agosto – Barcelona – Madrid
Viagens extra :
Barco Brindisi – Corfu – Brindisi
Camioneta Corfu – Atenas – Corfu
Camioneta Nápoles – Sorrento – Positano - Sorrento – Nápoles
Camioneta Positano – Pompei – Positano
Camioneta Madrid – Lisboa
Passados mais de 6 anos reli o que escrevi e agora apeteceu-me partilhar, acrescentando algumas fotos e outros elementos que afinal não estavam perdidos :*